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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Com uma oposição fuleira, só resta Dilma


O vazio político
Até agora, Dilma Rousseff deveria agradecer a Deus pelos concorrentes que se apresentam à Presidência da República. Para eles, as manifestações de junho, em larga medida, não existiram. Continuam construindo discursos e estabelecendo prioridades como se estivéssemos na década de 90, com seus arroubos liberais. Dessa forma, Dilma aparece como a candidatura mais à esquerda no páreo.

Quando a população foi às ruas em junho, ouvimos um conjunto de exigências que acabaram por se destacar. Certamente, ninguém saiu gritando slogans em defesa do sacrossanto tripé econômico: câmbio flutuante, superavit primário e meta inflacionária. Na verdade, o povo falou, com força, que queria priorizar um outro tripé, a saber, o social: transporte público de qualidade, educação pública "padrão Fifa" e saúde pública sem subfinanciamento.

Nesse sentido, não é por acaso que as mais recentes manifestações giram em torno do sucateamento da profissão de professor em escolas públicas.

O governo esboçou uma reação mínima ao requentar duas propostas que já circulavam: o programa Mais Médicos e a vinculação da renda do pré-sal à educação e à saúde. Em si, as propostas eram boas e mereciam ser implementadas, mesmo que a segunda não passasse de promessas em cima de lucros potenciais, que demorarão anos para entrar nos cofres da União. Uma estranha maneira de responder à urgência das ruas com promessas de longo prazo.

No entanto não se ouviu praticamente nada dos outros candidatos até agora no páreo.
Nenhuma proposta minimamente ousada sobre o fortalecimento dos serviços públicos e as modalidades de capitalização do Estado para tanto. Todos eles preferiram seguir o mesmo figurino e centrar seus discursos em tópicos como a diminuição do pretenso estatismo do governo, a reiteração do eterno mantra dos impostos altos e a criação de melhor ambiente para investimentos estrangeiros. Os mesmos que já apareceram em outras eleições e foram derrotados.

Era de esperar que alguém lembrasse, ao menos, dos nossos absurdos nacionais, como a ausência de uma fiscalidade que sirva de base de combate à desigualdade econômica e a inacreditável oligopolização de nossa economia atual.

Mesmo a respeito da reinvenção de uma democracia com forte densidade popular e menos mediações institucionais, outro tópico claramente posto pelas manifestações, não se ouviu, até agora, nenhuma proposta concreta. Dessa forma, cria-se um verdadeiro vazio político, que beneficia indiretamente quem está no governo.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O gaúcho Pateta, dos estudios Walt Disney



A partir de 1941, os estudios Disney se envolveram com o Departamento de Estado do Governo Roosevelt para fins de investida comercial na América do Sul. Os mercados europeus estavam fechados pela guerra, assim, os EUA precisavam de parceiros comerciais na própria América, bem como em fazer aliados e estreitar relações com os governos do Brasil e da Argentina, especialmente.

Disney foi usado para tais finalidades, por isso criou dois personagens para agradar os sulamericanos. Foram criados o Joe Carioca (Zé Carioca) e El Gaucho Goofy (Pateta Gaúcho), este já existia, mas foi redesenhado como um tipo cowboy dos pampas com a finalidade de fazer-se simpático ao povo argentino.

Como se vê, o uso político-comercial do gaucho (ou gaúcho) foi uma ideia anterior aos jovens estudantes do Colégio Júlio de Castilhos de Porto Alegre, quando, na década de 1950, resolveram dar um perfil mais definido ao “tipo ideal” (Weber) do Rio Grande do Sul.

Os jovens sulinos, representados basicamente por Paixão Cortes e Barbosa Lessa, estavam inventando uma tradição, como tantas outras que se criam mundo afora, à guisa de suporte de feitos heróicos para fins de coesão social, mitos políticos (comumente de direita, como Joana D'Arc na França) e mesmo meros produtos comerciais passíveis de virarem fetiches mercadológicos.

Vejam que a própria ideia já é de segunda mão, os rapazes do Julinho chegaram tarde ao mercado do gaucho. Disney chegou primeiro.
  

sábado, 5 de outubro de 2013

Edward Hopper e os preâmbulos do fim do mundo



Obras do pintor estadunidense Edward Hopper (1882-1967). Foi o pintor que soube colher no traço, na cor e na iluminação, com as quais compõem as suas obras, a forma humana da solidão, da incomunicabilidade, e do silêncio ao redor.

As figuras humanas de Hopper parece que sofrem um mal-estar suave, mas definitivo, irrecorrível e infinito. 

Ele brigou com os vanguardistas da pintura abstrata como Jackson Pollock ( 1912-1956), por exemplo, porque via nesta expressão artística uma forma de esconder a opressão humana de nosso tempo. Para Hopper, abstrato é o sentimento (a solidão, por exemplo), e não a sua arte pictórica. 

O tratamento que Hopper dá à luz é belo, único e intrigante, ele consegue imagens que quase sugerem o final dos tempos, a luz que precede a hecatombe, a luz que antecede ao cessar definitivo do sol. Arrisco a afirmar que Hopper é um pintor escatológico. 

Já a fotografia da grande Dorothea Langer (1895-1965), outra forma de expressão artística, vai também na mesma direção, agora estimulada pela Grande Depressão da década de 1930, nos Estados Unidos. A inspiração é a mesma, mas com linguagens técnicas distintas. 





Cesária Évora e Salif Keïta, juntos




E aqui abaixo, somente a voz de Salif Keïta, o cantor albino do Mali (África Ocidental)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A psiquiatrização da vida cotidiana e a velha moral conservadora


A moral psiquiátrica
Há alguns meses, as livrarias, enfim, receberam a última versão do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)".

Ainda sem tradução em português, o "Manual" foi objeto de críticas virulentas vindas até mesmo de psiquiatras que trabalharam em versões anteriores dele, como Allen Frances. As acusações giravam em torno da verdadeira "psiquiatrização da vida cotidiana" que a profusão de categorias clínicas produzidas pela nova versão do "Manual" parece acarretar.

Longe de ser uma discussão que interessa apenas profissionais da área de saúde mental, a querela em torno do DSM-5 é uma questão social da mais alta importância, pois define como valores sociais travestidos de normalidade médica são naturalizados. Ela não pode ser esquecida.

Tomemos, a título de ilustração, um exemplo. Quem abrir a página 667 da versão inglesa do DSM-5 encontrará o peculiar "transtorno de personalidade histriônica".

Seus oito critérios diagnósticos, que definem se alguém tem ou não o referido transtorno, comportam as seguintes pérolas: sente-se desconfortável em situações nas quais não é o centro das atenções; tem comportamento inapropriadamente provocativo e sedutor; usa constantemente a aparência para chamar a atenção; é sugestionável; tem um estilo de fala excessivamente impressionista; tem expressões exageradas de sentimentos e considera as relações mais íntimas do que realmente são.

Talvez você pergunte se, afinal de contas, esses são critérios clínicos de definição de transtornos ou simplesmente critérios morais sobre comportamento, que tentam esconder sua verdadeira natureza.

Afinal, qual o marcador para definir "estilo de fala impressionista", "expressões exageradas de sentimentos", a não ser o que o assentimento social e seu psiquiatra entendem como tal? Mas, se este for o caso, não estaria o psiquiatra a dar lugar à figura do bom e velho educador?

De fato, não é difícil perceber como, nesses "critérios diagnósticos", encontram-se todos os clichês crassos sobre o comportamento feminino que assombravam a antiga categoria clínica de "histeria", com sua "feminilidade teatralizada": a verdadeira base para o dito transtorno de personalidade histriônica.

Alguém poderia imaginar que tais "personagens morais" a habitar o mais avançado tratado de psiquiatria, resultado de anos de trabalho árduo e caro, não são simples desvios de rota a serem expurgados nos próximos anos, mas sintomas que mostram a verdade de todo o projeto.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. 

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