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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

segunda-feira, 22 de abril de 2013

1964 - Um golpe contra o Brasil - o documentário



"1964 - Um golpe contra o Brasil", é um documentário de autoria do ex-preso político Alipio Freire.

O filme é uma realização do Núcleo de Preservação da Memória Política e da TVT (TV dos Trabalhadores), com apoio do Memorial da Resistência de São Paulo. 

Imperdível! O vídeo dura 146 minutos. Assista e divulgue-o.

domingo, 21 de abril de 2013

Capa de Zero Hora quer atacar nova lei do trabalho doméstico



A capa do jornal Zero Hora, edição de hoje, é um primor de sutileza. Estampa a bela atriz global, Taís Araújo, com a sua beleza afro, numa pose desafiadora, vestida com esmêro e riqueza de detalhes.

A fotografia de Taís como que ilustra uma matéria sobre a nova lei do trabalho doméstico. Por óbvio e por tradição, ZH é contra a lei de direitos. Mas ao manifestar-se encobre-se com a máscara da covardia e da dissimulação. 

Observem o nexo que o editor quis promover: uma negra bonita e produzida, com ar desafiador e insolente face às novas regras, com mais direitos, às trabalhadoras do ambiente doméstico.

A foto da atriz global ilustra, a rigor, uma matéria sobre o seu trabalho na TV, mas a forma como foi montado o jogo de ilustrações e manchetes da capa, há uma relação direta, embora subliminar, entre Taís e a crítica que o jornal faz à nova lei de direitos de trabalhadores no País.

A matéria de ZH quer criticar a lei de direitos. Para tanto, sugere que está havendo desemprego e insatisfação generalizada no meio: seja no patronato, seja entre as trabalhadoras.

Este é o jornal da RBS: jogando pedra numa lei modernizadora, constituinte de direitos, promotora de dignidade de trabalhadoras que eram tratadas com objetos do lar da classe média, uma lei que retira da servidão cerca de 7 milhões de pessoas que viviam no limiar entre a casa-grande e a senzala.

Quando os últimos sinais do regime escravocrata no Brasil são extintos, a RBS se insurge e faz essa capa da vergonha e do atraso.

Sei não, mas Taís Araújo pode muito bem processar judicialmente o jornal da RBS por uso indevido de sua imagem, racismo velado e danos morais. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Retomar juros altos é retroceder em conquistas importantes para a população brasileira



Que não seja mais uma construção interrompida

Esta semana o Copom do Bacen se reúne para definir a taxa de juros. [A reunião foi ontem e decidiu por aumentar os juros em 0,25%. Nota do blog DG.] Trata-se de decisão da maior relevância, especialmente porque se dá em contexto econômico complicado, e sob um verdadeiro massacre ‘midiático’.

Consideramos que o controle da inflação foi uma conquista da sociedade brasileira, a ser defendida. Em 14 anos de vigência do “Sistema de Metas para a Inflação”, em apenas três anos a meta não foi cumprida (2001, 2002 e 2003). Desde então, não houve falha: 2012 consagra o 9º ano consecutivo de atendimento à meta de inflação.

Trata-se de uma longa construção, reforçada pela postura de verdadeira independência do Bacen, marcadamente desde a última reunião de 2010, quando o Copom adotou medidas macroprudenciais, elevações de depósitos compulsórios e exigências de reserva de capital. Esta diversificação dos instrumentos foi uma grande inovação, pois para o mercado seria mais simples avaliar apenas mudanças na taxa básica de juros. Além disso o Bacen, balizado pelo bom senso, definiu uma convergência mais suave da inflação para a meta, pois seriam demasiados os custos de buscar o centro da meta ainda em 2011, como desejavam os ‘lobbistas’ do juro alto.

Os servidores do Bacen têm trabalhado incessantemente no refinamento dos Relatórios de Inflação trimestrais e nos Relatórios de Estabilidade Financeira, os quais embasaram meticulosamente a marcante decisão de 31.8.2011 que deu início à redução dos juros para os atuais patamares. Também constatamos melhorias nos mercados financeiros e de capitais, graças aos superávits primários consistentes e à redução da dívida pública (relativamente ao PIB). A economia brasileira hoje apresenta sólidos indicadores de solvência e de liquidez e baixos prêmios de risco, que também são conquistas com elevado grau de perenidade.

Evidente que, face aos ciclos econômicos, é normal ocorrerem reversões conjunturais. A atual resistência da inflação decorre: (i) estruturalmente, dos anos de crescimento econômico com forte ampliação da demanda (consumo), que hoje se refletem em alguns estrangulamentos da oferta; e (ii) conjunturalmente, de pressões localizadas de custos como os relativos à alimentação.

Por conseguinte é primordial, hoje, o estímulo à ampliação dos investimentos na oferta e na infraestrutura de seu escoamento. Exatamente o contrário do que se conseguirá com a subida dos juros, que aumentará os custos de produção (custo de capital e financeiro) e bloqueará o aumento da oferta.

O ataque à produção e aos salários é vocalizado, por exemplo, pelo economista-chefe e sócio do Itau-Unibanco (coincidentemente um ex-dirigente do BCB), que recomenda: “reduzir o consumo e desaquecer o mercado de trabalho” (OESP, 5.3.2013, p. A02).

Apesar da fraqueza da ‘atividade econômica’ que teima em “não engatar a 1ª marcha” o 'sr.mercado' jura: "o ‘PIB’ ainda não está suficientemente fraco...".

Cabe-nos indagar: qual seria o nível de PIB suficientemente fraco? E o adequado? Quais os estudos empíricos, técnicos ou acadêmicos que o determinam? Há consenso? Quando a FIESP, a FCESP e os sindicatos reclamam que os juros estão altos, são taxados de “políticos”. Os que reclamam o contrário não o são? Vamos combinar então: os que defendem os ganhos dos rentistas são sempre técnicos; os que defendem a produção e os assalariados são políticos...

Não estamos propondo teses radicais (que nunca foram as nossas) contra qualquer aumento da taxa de juros. Mas não podemos deixar de constatar, sempre que surge este debate, a existência de radicais do outro lado do “front”: especialistas que estão sempre a postos para defender a alta dos juros, escudados por argumentos lapidares e pela única opinião correta, científica e profissional; de posse de tal ciência, decretam que qualquer outro parecer é amador, não científico, não profissional ou, pior, contaminado pela política.

Estes especialistas têm (sempre) tanta convicção que os juros devem aumentar que desatam a atacar, também, qualquer postura que se mostre ponderada, cautelosa ou que se busque pautar pelo bom senso, como a defendida por alguns economistas – e que vem sendo adotada pelo Banco Central.

A receita destes especialistas é sempre a mesma, fazer o que sempre foi feito para tornar o país campeão da pobreza e da desigualdade. Esta chaga social teve grande contribuição destes despojados ‘cientistas’; eles sempre tiveram a resposta pronta na ponta da língua --até porque a resposta é sempre a mesma: “juros de todo o mundo, ‘subi-vos’!”.

Como a sabedoria popular ensina que até um relógio parado acaba ‘dando a hora certa’ (duas vezes ao dia!), talvez os sábios ‘juristas’ acertem desta vez e o Copom aumente os juros – para debelar o acirramento das expectativas inflacionárias, frise-se, que estes sábios insistentemente atiçaram.

Conclamamos o Bacen a persistir na efetiva independência – também do sistema financeiro – e a não interromper a construção ponderada e competente dos últimos anos.

Artigo do economista José Paulo Vieira, autor do livro “Antivalor: um estudo da energia elétrica”, Editora Paz e Terra, 2007.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Neoliberalismo: teoria em Porto Alegre, prática na Europa



Se trocarmos Rosario (Argentina) por Porto Alegre, essa charge nos serve. É só lembrar o evento anual dos neoliberais sul-rio-grandenses, denominado (autoengano!) "Forum da Liberdade", cuja edição 2013 recém foi concluída em Porto Alegre. 

"Está certo...os teóricos em Porto Alegre e os trabalhos práticos na Espanha, Grécia e Chipre".

terça-feira, 9 de abril de 2013

Chove sobre Porto Alegre e dez mil pessoas protestam



Vídeo do Coletivo Catarse sobre a mega manifestação de protesto em Porto Alegre contra os preços abusivos das passagens de ônibus urbanos. O fato ocorreu na semana passada, quinta-feira, 4 de abril.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Thatcher: morreu hoje a mulher que quis matar a política


[A propósito da morte, ocorrida hoje, da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, republicamos o comentário que fizemos ao filme 'A Dama de Ferro', publicado originalmente neste blog DG em 23 de abril de 2012.]

 'A Dama de Ferro' é uma alegoria sobre o declínio do neoliberalismo

Ontem à noite, quando saí do cinema onde assistira ao filme da diretora britânica Phyllida Lloyd, me ocorreram três coisas. Senti uma vontade danada de beber uísque. Pura sugestão, é que madame Thatcher bebe o tempo inteiro do filme. Lembrei de Getúlio Vargas e da jornalista Gilda Marinho, uma figura meio folclórica no cenário high society porto-alegrense dos anos 70 e 80.

Me explico: Gilda Marinho foi atacada uma vez por um inimigo oculto e dado a brincadeiras pesadas e maliciosas. Tal pessoa mandou publicar nos classificados em jornal edição dominical um anúncio onde se vendiam dezenas ou centenas de garrafas de uísque vazias. "Tratar com Gilda Marinho, no telefone tal" - dizia o anúncio.

Confesso que desconhecia essa propensão à sede da Baronesa Thatcher. Quantas garrafas vazias ela estaria em condições de vender, hoje? Sendo assim, vejo que a guerra das Malvinas foi um verdadeiro duelo de pinguços. Ninguém desconhecia na Argentina e arredores que o general Leopoldo Galtieri, presidente-ditador na época da guerra pelas ilhas do Atlântico Sul, era outro que abrigava uma pedra de sal na garganta e buscava a cura através da ingestão de hectolitros de álcool.

E falando sobre Getúlio Vargas já podemos comentar o filme sobre a dama de ferro. A imortal frase de Vargas, na hora da morte, "saio da vida para entrar na história", não serve para a senhora Thatcher. Ela ainda vive, mas a história já a abandonou, antes mesmo de convidá-la a adentrar o seu templo de glórias e ilusões.

A qualidade do filme de Phyllida Lloyd está justamente no fato de não entrar muito no mérito político da ex-primeira ministra da Grã-Bretanha. Ao mostrá-la no fim da vida, já enferma pelo Alzheimer, açoitada por fantasmas os mais diversos, mas em especial, Denis, o marido pimentinha, Phyllida faz um julgamento branco do legado político da Baronesa.

David Cameron, o atual primeiro-ministro britânico, igualmente conservador como ela, não gostou do filme, e perguntou "por que logo agora aparece um filme sobre Thatcher?".

Ora, a resposta parece óbvia. Tudo aquilo que foi sólido e sagrado, tudo o que foi construído/destruído por Thatcher agora se desmancha no ar e é profanado. Margaret não saiu da vida e nem entrou para a história.

Margaret é um zumbi condenado a escutar vozes e a ter que ligar todos os eletrodomésticos da sua vetusta residência para ter um segundo de sossego e paz de espírito. Como já não pode mais fazer uma faxina nacional no País, o faz no seu quarto atulhado de lembranças e espectros zombeteiros.

A abertura do filme é brilhante. Margaret apanha meio litro de leite numa mercearia de esquina e não é reconhecida por ninguém. Ao contrário, é ignorada com ênfase de má educação, um sujeito se atravessa no balcão e não respeita a fila do caixa, um negro jovem e muito alto roça o seu traseiro e não presta a atenção à sua idade e sobretudo à sua antiga condição de primeira mandatária do País.

Ela sente que voltou a ser a moça do cotidiano (esse "nocivo espaço da atualidade", como dizia Lukács), quando auxiliava o seu pai na quitanda da família, interior da velha Inglaterra. Chega em casa e tem uma pilha de livros para autografar, até que volta a assinar Margaret Roberts, seu nome de solteira. O inconsciente é malcriado, mesmo não consultado emite seus pareceres sobre nós mesmos, e sobretudo contra nós mesmos.

O carrossel da história volta ao seu ponto de partida. Tudo o que fez de sagrado, está sendo profanado. Ela já não se reconhece no mundo por ela forjado.

'A Dama de Ferro' é um filme sobre o ocaso do neoliberalismo, mesmo sem citá-lo uma única vez e ainda que modelado na linguagem da subjetividade de uma senhora muito idosa governada por sua memória, nem sempre amigável.

Margaret Thatcher foi a face do neoliberalismo, agora está no declínio da existência, cumpre um roteiro meramente biológico, porque a história já a rechaçou e a economia não mais a reconhece.

Margaret sente que já não é mais deste mundo e o fantasma de Denis Thatcher (o marido, que morreu em 2003) insiste em apontar-lhe o excesso de ambição pessoal e o excesso de uísque. Neste ponto, a diretora e a roteirista (Abi Morgan) usam um recurso narrativo de sutil mas aguda crueldade: os fantasmas são uma forma de autocrítica para quem - arrogante - é incapaz de fazer autocrítica.

O fenômeno Thatcher resultou da profunda crise de acumulação do capital experimentada pela Grã-Bretanha nos anos 1970. O sindicalismo foi muito organizado e logrou obter êxito na disputa por melhores salários, condições de trabalho e demais conquistas sociais do chamado welfare state.

Enquanto houve excedente para ser dividido com o capital, os trabalhadores ingleses souberam negociar de forma a se apropriar de parte do bolo produtivo. Quando sobreveio a crise escasseou a redistribuição, surgiram os conflitos, as greves (que não ocorriam desde 1926), a estagflação (inflação de 26%) e rápido aumento das taxas de desemprego (cerca de 1 milhão de pessoas, em 1975).

Passou a haver crise de legitimidade, aumento das dificuldades fiscais, crise na balança de pagamento e monumentais deficits orçamentários. Trabalhistas e conservadores (partido de Thatcher) se revezavam no poder entre 1974 e 1979, com aprofundamento crescente da crise e recrudescimento das greves (transportes, limpeza urbana, setor saúde e inclusive coveiros fizeram paralisações prolongadas).

É neste contexto de profunda crise do capital pondo fim a uma prolongada política de aliança de classes entre os trabalhadores e a grande burguesia decadente que emerge ascensional a estrela de Maggie Thatcher.

O filme mostra a dificuldade sentida por ela para se impor junto aoestablishment do partido conservador, não só por ser mulher, mas sobretudo por ser filha de um pastor metodista e pequeno comerciante do Norte do País. Uma outsider adventícia no seio do baronato que foi e é íntimo da Coroa inglesa.

Pois, para não decepcionar la crema y nata da velha nobreza inglesa, a filha do quitandeiro (como a chamavam à socapa nos corredores do partido) fez de tudo para se impor como a mais realista do Reino Unido.

Assumiu o poder em maio de 1979, já mostrando a que veio. Fez provocações diretas aos então fortíssimos sindicatos de trabalhadores e esgarçou o frágil tecido das relações capital/trabalho ao máximo. Conseguiu com isso, estimular muitas greves prolongadas e que paralisaram o país, por muitos meses. A greve dos mineiros durou quase um ano de confrontos entre o Estado e os sindicatos. Tudo o que ela desejava, politicamente.

O desmantelamento do Estado de bem-estar social atacou as áreas da saúde, assistência social, educação pública, Universidades, a burocracia estatal e o poder judiciário. O salário mínimo foi extinto e os impostos passaram a ser regressivos (poll tax, onde os ricos pagam menos e os trabalhadores pagam mais impostos), como forma de estimular os investimentos privados, já que o Estado estava se exonerando da economia.

Thatcher comprava briga em várias frentes ao mesmo tempo e procurava se legitimar através de um programa habitacional de venda direta das propriedades do Estado aos seus antigos locatários.

O discurso para conseguir o consentimento legitimador calcava nas consignas do ultraliberalismo de Friedrich Hayek: direito de propriedade individual (o plano habitacional garantia isso), cultura do empreendedorismo e do individualismo, regras de controle, responsabilidade financeira e produtividade nas instituições públicas, estímulo aos valores conservadores da classe média (Thatcher é o próprio triunfo da classe média), incentivo ao consumo intensivo à custa do endividamento em massa dos assalariados (como forma de criar um compromisso inescapável com o sistema).

A partir deste ponto, o centro da vida é o mercado. A mercadificação de tudo significa direitos de propriedade sobre processos, coisas e relações sociais (Harvey), supondo que tudo sob o céu é passível de ser atribuído um preço - em dinheiro - e portanto negociável nos termos de um contrato legal.

É o surgimento do chamado homem unidimensional, de que falava Marcuse ainda em 1964. O mercado (e as mercadorias) é um guia próprio para todas as ações humanas, ou seja, o mercado é uma ética.

A meu ver o mais grave dos legados da era Thatcher (1979-1990) é a tentativa de abolição da esfera política.

A queda de braço com o movimento sindical visava a eliminação física dos trabalhadores, como atores sociais reconhecidos. Ela decidiu importar carvão mineral para não negociar a agenda dos mineiros ingleses.

Preferiu comprometer mais e mais as finanças já combalidas do Estado a recuar um milímetro no seu intento de esmagar a capacidade política e orgânica dos sindicatos.

A anulação e a subsunção da esfera política às desigualdades do mercado é a suprema maldade do ultraliberalismo thatcherista. É o seu legado mais forte e permanente. Se a política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes, como nos ensina Hannah Arendt, já se vê que a sua derrocada representa um retrocesso civilizatório.

Aniquilar o fazer político é o mesmo que erradicar a pluralidade humana, estreitar a capacidade que adquirimos culturalmente de buscar objetivos que contemplem o diferente e o desigual, numa síntese dinâmica, provisória e em vias de permanente aperfeiçoamento. Matar a política é o mesmo que condenar o homem a renunciar a sua liberdade, é mantê-lo escravo das suas próprias contingências, batendo cabeça num eterno cotidiano opressivo e redutor.

O neoliberalismo é uma fórmula perversa de apagar a política em favor da ditadura dos mercados.

Os governos que sucederam a primeira-ministra Thatcher conseguiram abolir algumas medidas antissociais da ex-quitandeira, como: o salário mínimo (Tony Blair, trabalhista) e o imposto regressivo (John Major, conservador), mas a desqualificação da esfera política está sendo de difícil reversão, até porque isso se alastrou pelo mundo todo, com a crescente importância da economia sobre a política.

Nem a duplicação da taxa de pobreza na Grã-Bretanha, durante os 11 anos de Maggie no poder, pode ter repercussões tão deletérias como o ataque à política.

Talvez por esse motivo o filme de Phyllida Lloyd tenha igualmente um olhar tão distante da política propriamente dita, embora não seja um filme apolítico. Não o é. Mas, não falar não significa não ser.

'A Dama de Ferro' é um filme fortemente político, exageradamente politizado. Uma alegoria se notabiliza precisamente por não falar diretamente sobre a sua identidade. Uma alegoria é sempre um disfarce, uma representação do objeto ao qual se refere.

A diretora Phyllida e a roteirista Abi quiseram falar do neoliberalismo, justamente no momento do seu lento e inexorável crepúsculo, e o fizeram falando e narrando sobre Thatcher - hoje Baronesa Thatcher de Kesteven (viram, ela também virou la crema y nata da sociedade british!) - no ocaso de sua vida biológica. Simples e direto como pôr um ovo em pé.

Não é à toa que a direita britânica, a começar pelo primeiro-ministro Cameron, não gostou do filme.

Claro, foram cínicos, alegaram que a ex-primeira-ministra foi retratada na sua demência senil, que isso é cruel, etc. Mas jamais admitiram que falar de Thatcher é falar da senilidade do próprio sistemão que ela criou.

Por esse singelo motivo eu reputo o filme 'A Dama de Ferro' de genial. E, depois, mulheres fazendo cinema, sempre resulta em algo inteligente e instigante.

Ah!, Meryl Streep está soberba como a Baronesa demente. Na saída do cinema ouvi alguém perguntar: "E a Meryl Streep, onde aparece no filme?" É o melhor elogio que uma atriz pode receber, melhor que o Oscar 2012.



Ilustração de André Feil (1989)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Antígona e os corpos insepultos da ditadura brasileira


As outras sepulturas

Sempre é bom começar citando Hegel. Porque dá uma certa classe ao texto e porque, a partir de Hegel, você pode ir para qualquer lado, para a esquerda e/ou para a direita. Marx afiou suas teses criticando e às vezes assimilando Hegel, e Hegel, ao mesmo tempo em que sacudia o pensamento conservador europeu, era o exemplo mais acabado do que Marx abominava, o filósofo que explicava o mundo em vez de tentar mudá-lo. Mas minha citação de Hegel não tem nada a ver com esta divisão, mesmo porque é uma que todo mundo – a partir da redescoberta da peça no século 18 – endossaria. Hegel disse que a Antígona, de Sófocles, era o mais sublime produto da mente humana, e sua heroína a mais admirável personagem, da História.

Escrita 400 anos antes de Cristo, a peça conta a história da filha de Édipo, rei de Tebas, com a sua mulher (e mãe, lembra?), Jocasta. Antígona quer enterrar seu irmão, morto num ataque a Tebas, contrariando as ordens do rei Creonte, para quem o corpo do traidor, que permanecerá insepulto, pertence ao Estado e não à sua família. Antígona rouba o corpo do irmão para que sua alma, sem os ritos fúnebres, não se perca no mundo dos mortos, e o sepulta no meio da noite. Para punir sua desobediência, Creonte a condena a ser enterrada viva. Muitos conflitos são desnudados na peça, mas o principal deles é entre o Estado e o indivíduo, entre a lei fria e costumes antigos, entre o direito do soberano e o direito do sangue comum. O fascínio da peça para Hegel e outros tem muito a ver com o renascente interesse pela cultura grega na Europa de então mas também com a revolução que acontecia nas relações estado/cidadão no explosivo começo do século 19.

A história de Antígona se adapta ao momento no Brasil, quando se tenta investigar o que permanece simultaneamente enterrado e insepulto no nosso passado, tantos anos depois do fim da ditadura. Os corpos ainda não foram devolvidos às suas famílias, os direitos do sangue ainda não se impuseram aos direitos do Estado algoz, os ritos fúnebres de muitos continuam restritos à imaginação de novas Antígonas, tão trágicas quanto a Antígona grega. Os arquivos da ditadura estão sendo aos poucos desenterrados. Já passou da hora de abrir as outras sepulturas

Artigo de Luis Fernando Veríssimo, publicado hoje em diversos jornais do País.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Zero Hora insiste com as velhas políticas do fracasso



Rejeitada pelo voto popular, ideologia do “déficit zero” segue viva na mídia

O governo Yeda Crusius (PSDB) foi amplamente rejeitado pela população do Rio Grande do Sul. Ao final de quatro anos, a governadora tucana, candidata à reeleição, amargou um terceiro lugar na disputa eleitoral de 2010. Esse resultado foi, sobretudo, uma rejeição às políticas implementadas pelo governo do PSDB e seus aliados.

Considerando que o déficit zero foi a peça programática central do governo Yeda Crusius, a voz das urnas foi uma reprovação da ampla maioria da população a este discurso que procura se apresentar como técnico, mas que está impregnado de uma ideologia fundamentalista do mercado que tem aversão ao Estado, exceto, é claro, quando precisa se socorrer dele como aconteceu recentemente na Europa e nos Estados Unidos.

Rejeitada nas urnas e também nas ruas, isolada politicamente no Brasil e em boa parte da América Latina, essa ideologia segue viva, porém, nos espaços editoriais dos veículos pertencentes às grandes empresas de comunicação.

No Rio Grande do Sul, um dos principais defensores da ideologia do déficit zero é o jornal Zero Hora, principal veículo impresso do Grupo RBS. A pregação é sistemática, articulada e permanente.

Nesta quarta-feira, a principal colunista política do jornal, Rosane de Oliveira [fac-simile acima], volta ao tema, estabelecendo um curioso paralelo entre, por um lado, os governos de Germano Rigotto e Tarso Genro, e, por outro, o governo de Yeda Crusius.

O “pecado” dos governos Rigotto e Tarso seria recorrer aos depósitos judiciais para pagar as contas. Esses depósitos, assinala a jornalista, estavam “preservados desde o início do governo de Yeda Crusius”.

Na avaliação da colunista de ZH, “o quadro caótico das finanças estaduais é resultado de uma combinação entre excesso de gastos, especialmente com reajustes salariais para servidores, com redução da receita prevista”.

Rosane de Oliveira acrescenta: “Com os aumentos já aprovados, os gastos com pessoal neste ano serão 14,5% superiores aos do ano passado – e isso que o governo não está cumprindo a lei do piso do magistério”. Na mesma edição de ZH, uma matéria da editoria de Política trata dos “aumentos em série no Estado”.

O governador Tarso Genro rejeita o rótulo aplicado à situação financeira do Estado:

Caos financeiro foi o que encontramos com o déficit zero, venda de ativos públicos para pagamento de contas, atraso frequente de pagamento de fornecedores e baixa taxa de investimentos, tanto do orçamento como oriundos de financiamentos. O Governo Rigotto também retirou, corretamente, R$ 2 bilhões de depósitos judiciais para manter um controle das finanças e não paralisar completamente o Estado”.

A crise financeira da maioria dos estados brasileiros é real e só será resolvida quando, entre outras coisas, a Reforma Tributária deixar de ser um mito. Isso implica discutir o modelo de financiamento do Estado brasileiro e o papel do próprio Estado. Para que ele serve mesmo?

O problema da ideologia do déficit zero é que ela prega, na prática, o encolhimento do Estado a um nível tão mínimo que ele deixa de ser relevante como instituição. Aí, supostamente, entrariam o deus mercado, a livre iniciativa, o livre comércio e as privatizações para garantir paz e prosperidade a todos. O Brasil e praticamente toda a América Latina viveram esse modelo por cerca de duas décadas. O Rio Grande do Sul, de modo mais agudo, teve a experiência desastrosas do governo Yeda Crusius.

Há um elemento comum a estas políticas (se é que podem ser assim chamadas, uma vez que, no limite, desprezam a política): a rejeição nas urnas. Isso não ocorre por acaso.

Aplicar uma política de déficit zero é simples: basta não dar aumento aos servidores, cortar gastos de custeio e políticas públicas, reduzir os serviços públicos prestados do ponto de vista de sua quantidade e de sua qualidade. A partir daí, engendra-se uma lógica argumentativa bizarra: um governo prega as virtudes de gestão do mercado e sucateia o Estado; sucateado, o Estado deixa de prestar adequadamente serviços públicos essenciais; rejeitado pela população, esse governo é varrido pelo voto; o governo que assume tenta recompor a estrutura do Estado e passa a ser cobrado, ao mesmo tempo, por estar gastando demais e também por não estar garantindo a segurança, a saúde e a educação de que a população precisa.

Ou seja, o Estado não pode gastar, os servidores não podem ter aumento salarial e a população não pode sofrer com falta de segurança, saúde e educação.

Os defensores desse modelo conseguiram mais uma proeza agora na Europa, onde a ideologia do déficit zero vestiu o disfarce da austeridade. Segundo o Eurostat, órgão estatístico da União Europeia, o número de jovens desempregados na União Europeia é de 5,732 milhões, 264 mil a mais do que há um ano, subindo de 22,4% para 23,6%.

Isso é que é governar com responsabilidade.

Artigo do jornalista Marco Weissheimer, do blog RS Urgente, edição de hoje.

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